Imagem retirada da internet
Tal como as borboletas esvoaçavam livres de flor em flor, também Marina saltitava pelo campo que ficava junto ao quintal da avó Ana, trauteando as canções que aprendera com as amigas da escola. Protegia as tranças da cor das espigas, douradas pelo sol, com um enorme chapéu de palha com fita a condizer com as cores vivas do seu vestido.
Nas férias, gostava de procurar joaninhas nas hastes das ervas, sempre que estas faziam pequenas pausas no seu voo. Com cuidado, fazia-as descer pelo seu dedito e deixava-as percorrer a mão macia, resistindo às cócegas das patinhas pretas do insecto que corria até à sua palma da mão. Logo que aí chegavam, cantarolava “joaninha voa, voa, o teu pai está em Lisboa, a comer sardinha e broa”. Como que por artes mágicas, elas abriam as asas e batiam-nas até ganharem força e partirem com o seu vermelho sarapintado de pintas pretas. Ficava feliz e sonhava que a cantilena as ajudava a encontrar os parentes lisboetas.
Quase de seguida esquecia a que partia, para se entreter de novo a procurar outra…
Outras vezes, seguia o canto dos grilos. Cortava uma palha grande de erva, aproximava-se pé ante pé e metia-a na toca repetindo as palavras mágicas que o pai lhe ensinara “gri-gri-gri anda cá fora que já te vi, gri-gri-gri…”. O grilo tentava resistir à tortura, mas ao fim de algum tempo lá saía, de cabeça baixa, do buraco onde anteriormente cantava feliz.
Era então, com gesto ladino que tapava com o pé o orifício. Prendendo-o com mão ligeira sem o apertar para não machucar ou estragar as asas. Afinal, este era o maior tesouro do grilo para continuar a ser bom cantador. Ao sentir-se encurralado, o insecto rabeava-lhe na mão. Mas ela resistia e não o deixava escapar. Sabia como iria ficar bonita a gaiola de madeira e arames que o pai lhe fizera e que estava suspensa por um fio na adega aguardando a chegada de inquilino. No regresso, com a mão livre, cortava a serradela para que o insecto ficasse bem acomodado no novo espaço e pudesse ter força para cantar todo o dia e toda a noite, animando e lembrando a todos que era Verão.
Mas, nesse dia…
O seu olfacto tinha sido desperto e fazia-a empinar o nariz e aspirar com tal força o ar que não conseguia deixar de espirrar. Sentia, vindo de não muito longe, um adocicado perfume que lhe aguçava a curiosidade e fazia querer investigar. Não resistindo, aos poucos foi-se afastando no campo até se aproximar do muro que o dividia da Quinta das Fontes.
A perna era curta, mas o engenho e a teimosia não foram impedimento para o trepar e saltar para o outro lado. Levantou então a cabeça, endireitou o chapéu, e os seus olhos arregalaram-se perante a descoberta. Um pomar com enormes filas de pessegueiros, carregados de frutos vermelhos e maduros que inundava as narinas e aromatizava o ar.
Na boca, a água crescia. Sem pensar, num gesto hábil, o seu olhar atento escolheu o maior e o mais bonito pêssego da primeira árvore, arrancando-o. Sentou-se ali mesmo, à sombra da fruteira e mordeu-o em grandes dentadas, satisfazendo o desejo com o suculento e maduro fruto que a deixou saciada e satisfeita.
Sacudindo as mãos pegajosas resolveu regressar pois era hora de voltar antes que dessem pela sua falta. Mas não sem antes deitar a mão a mais dois belos exemplares que guardou no bolso do vestido. Percorreu como uma flecha o caminho de regresso a casa, com o coração a bater forte pelo esforço e pela alegria da conquista.
Abrindo a porta de par em par, entrou esbaforida.
O pai, que se encontrava sentado no banco da cozinha fugindo ao calor, olhou-a com ar perscrutador:
– Então miúda, que te assustou?
Tirando os dois pêssegos do bolso, retorquiu:
– Pai, são para ti! Comi um e era tão bom!...
Um pouco surpreendido, o pai acabou por estender os braços aos pêssegos e foi com um sorriso que disse:
- Vamos lá ver como sabe a tua colheita. Na verdade estou com um pouco de fome!
E, piscando o olho, abriu calmamente um dos pêssegos. Antes de o meter na boca exclamou:
– Está cheio de bichos!!!
Atirou-o logo de seguida para o balde do lixo com ar enjoado. Tentou o segundo e ao abri-lo tornou:
– Este também está cheio de bichos. Que porcaria!
Já a miúda olhava para ele com ar incrédulo, aflito e agoniado.
- Pai, o meu era bom! Pai, o meu não tinha bichos como os teus, pois não? O meu era muito bom, não era pai?
Sorrindo, o pai afastou-lhe o chapéu afagando-lhe as tranças carinhosamente, sossegando-a:
- Sim Marina, o teu pêssego era bom!
- … Mas não voltes mais ao pomar, está bem?!...