Conta a minha mãe que um mês depois de ter nascido, fui deixada na creche da fábrica onde ela trabalhava. Tanto eu como ela, tivemos a sorte de a creche ter vaga, pois na época isso nem sempre acontecia. E era lá que, no intervalo do almoço e do lanche, ela me amamentava e saciava com seu peito, auxiliando ainda com o leite que de mim sobejava, a enganar a fome a outros com mães menos afortunadas.
Lembro-me de, aos três anos, estar sentada no degrau da porta da creche, resguardada de perto pelo olhar atento das amas, à espera do toque do “canudo” e aguardando com impaciência que, de entre as centenas de rostos que por ali passavam, um fosse o da minha mãe, ou do meu pai, que também ali trabalhava.
Era ainda bem pequenita, quando a minha mãe “ficou a tomar conta da vida”, como ela costumava dizer, quando o meu pai se aventurou a emigrar, deixando-lhe a tarefa de guardar três crianças – eu, com três anos; o meu irmão do meio, com nove; e o mais velho, que aos quinze já trabalhava ao seu lado na fábrica.
Olhando para trás, não é difícil imaginar as dificuldades desta mulher. Chegar a casa do emprego a pé; cuidar da alimentação; da casa varrida a vassoura de piaçaba, esfregada a pulso e encerada; lavar a roupa e a loiça à mão; passar a roupa com o ferro a carvão (lembro-me bem pela marca deixada no meu braço) … Conta ela que o meu irmão mais velho a ajudava muito. Tenho gravado na memória que era muito meu amigo e me dava muito mimo (embora actualmente fosse considerado também ele ainda uma criança com a idade que tinha) cuidando da minha mãe e amparando-a como se já fosse um homem.
Pouco depois de fazer três anos, as crianças deixavam a creche para dar lugar aos pequeninos que iam nascendo e deviam ser alimentados pelas mães, tal como eu tinha sido - eram as normas da fábrica. Assim, passou a ser a Dona Helena a minha nova ama. Senhora que me ajudou a crescer até eu ter idade de entrar na escola primária.
Aos seis, ia para a primária a pé, pelos caminhos da aldeia. A minha mãe, antes de sair pela manhã, deixava o almoço quase pronto, acabando de o fazer quando chegava ao meio-dia. Almoçava e deixava o almoço para mim, voltando de novo à fábrica. Nessa altura já o meu irmão do meio frequentava o ciclo e só chegava à noite. E o mais velho já partira para França para se juntar ao meu pai.
Com pouco mais de nove anos, fui para o ciclo. Acordava com o toque de um despertador deixado estrategicamente em cima da almofada. Tratava de mim como sabia e como a idade o permitia, para apanhar o autocarro que me levava até à cidade (nesse tempo era vila), situada a sete quilómetros da minha aldeia. Há que fazer menção ao facto de que, por esta altura, já o meu irmão do meio também trabalhava.
Recordo que os meus pais não faltavam ao trabalho para ir falar aos professores. E as notas chegavam pelo correio no final do período.
Não tínhamos telefone, nem televisão e o resto… também não existia!
No meu tempo de escola, já a minha mãe me alertava: “Não aceites dinheiro de estranhos, não aceites boleias, não aceites rebuçados (sim falava-se já em raptos...); afasta-te de fulano que é velho e não se pode confiar… Etc.”
Aprendi a defender-me. A olhar, a analisar antes de confiar, a caminhar sempre que possível em grupo para me sentir protegida.
Já havia pedofilia, muitas vezes praticada por familiares e dentro de portas, silenciadas por medo ou por vergonha (há casos de filhas que têm filhos do próprio pai).
Quase não havia comunicação social! E a que havia, não chegava a todas as casas. Os jornais eram adquiridos comunitariamente para ficarem mais baratos e, quando chegava ao último (normalmente o mais pobre), a maior parte das vezes já vinha aliviado de algumas folhas ou com nódoas de azeite no lugar das letras.
Tive a sorte de, na época, se começar a desenvolver o desporto na minha aldeia. Criaram um clube desportivo e eu, que adorava correr, comecei a praticar atletismo.
Quando chegava da escola, eram já perto das oito da noite e, ainda sem comer, ia aos treinos. Neste período já a família tinha regressado do estrangeiro e todos trabalhavam fora. Nunca ninguém me foi buscar (a essa hora já o meu pai descansava para se levantar às cinco e meia da manhã, e não me lembro de ter tempo de brincar comigo!). Claro que tinha medo de às nove e meia da noite percorrer sozinha o caminho escuro e sem candeeiros na via pública até minha casa.
Medo?... Não!... Pavor!!!
Tanto, que nas noites de Inverno especava na última luz pública da estrada principal, aguardando que a sorte levantasse a cabeça e se lembrasse de me enviar alguém que, comigo, partilhasse o caminho estreito e negro como o breu, aliviando-o com o brilho de um cigarro, espantando assim o meu pavor de tropeçar no corpo tombado do “Capa”, que depois da sua bebedeira diária e, não atinando com o caminho de casa, se deixava adormecer por entre as ervas daninhas, praguejando e ameaçando quem com ele se cruzasse. E quando a sorte se recusava a fazer-me companhia e as horas começavam a fugir (e havia muitos dias!), desatava a correr, misturando os soluços de raiva com os de coragem - forçada, tropeçando demasiadas vezes nas pedras da calçada à portuguesa mal amanhada, no saco de desporto que pendia da mão, ou no guarda-chuva que teimava em enfiar-se entre as pernas e, desequilibrada pelo balanço provocado nas costas pelo peso da sacola da escola (que na época também era pesada!), esfacelava os joelhos e as palmas das mãos. Mas nunca e por nada parava, com medo que até o som dos meus próprios passos me estivessem a perseguir e me pudessem alcançar, ou mesmo ultrapassar, nesta corrida desenfreada.
No dia seguinte, de manhã, já não me lembrava da escuridão e do medo, dos joelhos pintados de vermelho com o mercúrio nem do penso colado na palma da mão. E longe de mim pensar em faltar ao novo treino!
Recordo que não havia passeios para os peões na estrada (no meu tempo de criança eram apenas valetas com ervas enormes). Não existiam passadeiras para peões (eu nem sabia o que eram, até chegar ao ciclo). Não havia polícias a patrulhar as ruas de carro ou de moto – a famosa “escola segura” (no meu tempo eram guardas republicanos, com um ar imponente, que percorriam as aldeias a pé e que só raramente se cruzavam connosco, mas que nos deixavam de coração a tremer por serem “seres raros”).
Estas são lembranças que guardo da minha infância. Não pretendo com elas minorar os perigos dos nossos dias. As crianças de hoje (e ainda bem que é uma boa parte delas!) vão de carro próprio com os pais, ou de autocarro, até à porta da escola. Muitos de nós (pais) conseguimos conciliar a hora de almoço (facilidades de ter viatura própria). Eu consegui fazê-lo com a ajuda do meu marido e vejo muitos casais que o conseguem. E deixamos que os miúdos optem e até que se recusem a comer na cantina, o que nos facilitaria a vida (se eu me recusasse e não gostasse da comida, comia à noite ao chegar a casa). Estou convencida que as “nossas” crianças de hoje têm muito mais atenção e protecção que aquela que, um dia, eu e os meus irmãos recebemos.
Acredito que as condições de vida mudaram para melhor em grande parte do nosso país, e que os nossos filhos têm uma qualidade de vida em muito superior às nossas. E AINDA BEM QUE ASSIM É! PARA ELAS E PARA NÓS!
Mas.
Imagem retirada da internet
Deixá-los escorregar e esmurrar os joelhos, às vezes pode ser importante para aprenderem a levantar e a retomar a marcha de novo quando estão sós!